As ameaças à Lei de Responsabilidade Fiscal

 

Dr. Sergio Rossi – Secretário-Diretor Geral do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo

O Projeto de Lei do Senado nº 316, de 2015, tinha escopo bem diverso daquele em que resultou a Lei Complementar nº 164, de 2018 (três anos de tramitação).Originariamente tal Projeto de Lei, a par de isentar das vedações previstas no artigo 23 da Lei de Responsabilidade Fiscal, praticamente bania do ordenamento a regra do artigo 42 da mesma lei.

A “pérola” concentrava-se na inclusão do artigo 42-A, cuja íntegra era do seguinte teor:

“O titular do Município está desobrigado de pagar as despesas empenhadas no mandato anterior de outro prefeito, ressalvada a hipótese de disponibilidades financeiras suficientes em caixa, em caso de perda de recursos financeiros, em comparação ao exercício financeiro anterior, oriunda de diminuição de arrecadação dos tributos de competência própria, de diminuição das transferências recebidas do Fundo de Participação dos Municípios decorrente de concessão de isenções tributárias pela União e de diminuição das receitas recebidas de royalties e participação especial.”

Da leitura extrai-se que os Prefeitos daquela quadra 2013 a 2016 não teriam nenhuma responsabilidade com débitos do mandato anterior.

Do trecho da esposição de motivos constava:

“Nesse sentido, apresentamos o presente projeto de lei para coibir a aplicação de sanções às municipalidades que desrepeitem o limite de sessenta por cento (60%) da RCL no tocante às despesas totais com pessoal e para permitir que o titular do município se desobrigue do dever de pagar despesas empenhadas pelo prefeito anterior em caso de perda de recursos financeiros oriunda de diminuição das transferências de recursos do FPM e rendas governamentais do petróleo.”

Ainda bem que a pretensão naufragou e resultou tão somente nas inclusões de parágrafos no artigo 23 da LRF que, na prática, para os poderes e orgãos jurisdicionados ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo não terão maiores reflexos fiscais.

Dos males o menor.

Sim! Refiro-me aos reflexos dessa última Lei em relação àqueles que serão produzidos por um instrumento denominado “Decreto de Calamidade Financeira”.

O fato não é novidade e o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, em tempo passado, expediu COMUNICADO em que:

A utilização desses instrumentos não encontra amparo no artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal e viola inúmeras regras do direito financeiro dentre outras, a quitação dos Restos a Pagar e a ordem cronológica de pagamentos, o que poderá trazer implicações no exame de contas anuais.” (DOE de 23/02/17)

      É que essa “invenção” vai resultar na produção incontrolável de atos afastados da necessária conformidade. Não vi o texto de tais Decretos, mas ouvi os comentários no sentido de que são necessários para, em última análise, reestabelecer o equilíbrio das contas públicas.

Ora, é evidente que os instrumentos necessários para o controle das finanças públicas estão à disposição dos responsáveis que, se bem manejados, garantem o tal almejado e necessário equilíbrio entre receitas e despesas.

Refiro-me à Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000 – que no §1º, de seu artigo 1º, define com clareza meridiana as razões de sua concepção, qual seja, a ação “planejada e transparente em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas.”

Sem falar da relevantíssima importância do planejamento sério e responsável em que as despesas hão de caber nas receitas, ao invés de projetar receitas que sabidamente não se realizarão, a Lei dispõe de rol de ações que se tornam imperiosas ante as ameaças de eventual desequilíbrio.

O artigo 9º, por exemplo, que trata sobre a limitação de empenhos sempre que “se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.”.

Esse é o instrumento que o gestor responsável e atento deve lançar mão quando ameaçada a higidez de suas contas.

O gestor há de saber eleger prioridades, mesmo sabendo-se que as prioridades são muitas e os recursos poucos.

Outra disposição de aplicação compulsória encontra-se na regra do artigo 11, consistente na previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos de competência constitucional da correspondente esfera de governo.

A regra é de tamanho significado que veda a transferência voluntária de recursos se não forem cobrados todos os impostos.

É conhecida a pouca disposição de governantes com essas obrigações, que aliadas às tímidas iniciativas, acumulam dívidas ativas de números consideráveis.

O mesmo raciocínio aplica-se aos comandos do artigo 14 que, em verdade, permite a renúncia de receitas, mas cercadas de cuidados que se não tomados pelo governante podem resultar em efeitos extremamente danosos.

Outro cuidado de lastro é o controle de gastos com pessoal que seguramente revela-se instrumento de uso político descuidado.

Há limites com os gastos com pessoal que devem ser observados rigorosamente para evitar, dentre outras consequências, aquelas do artigo 169 da Constituição Federal.

Outro ponto que há de ser respeitado é o comando do artigo 42, tantas vezes passíveis das mais variadas interpretações e que, a meu ver, deve permanecer como está, mantendo os necessários cuidados com a conta de Restos a Pagar referida no já mencionado §1º, do artigo 1º, da LRF.

Por último, espera-se que o indigitado Decreto de Calamidade Financeira não revogue o artigo 5º da Lei nº 8.666 de 1.993, evitando o perigo da excessiva discricionariedade.

Se a Lei de Responsabilidade Fiscal fosse cumprida em consonância com sua inspiração, não estaríamos diante desse cenário de desequilíbrio fiscal que dá azo a essa descoberta mirabolante chamada calamidade financeira.

Calamidade Financeira não se confunde com Calamidade Pública, esta última amparada no ordenamento constitucional e legal.